
É notório
que o processo revolucionário inicialmente conhecido como Primavera Árabe
reduziu-se a guerras civis e contrarrevolução. Será que ainda se pode falar de
uma guerra civil especificamente síria? A mesma guerra, opondo grupos radicais
sunas (que a imprensa brasileira chama de sunitas, acrescentando um “ita” que
lembra “ista”, que significa “tudo”, “total”, portanto “exagerado”) a governos
laicos, ou seja, onde existe liberdade religiosa ou de não ter religião e nos
quais regras religiosas não são impostas como leis anacrônicas, e a governos
chias (que a imprensa “brasileira” inventou de chamar de chiitas, acrescentando
o mesmo “ita” certamente depreciativo), já acontece no Líbano e no Iraque.
Aliás, um dos grupos sunas denomina-se Estado Islâmico do Iraque e Levante, o que inclui toda a região
desde a fronteira com os persas (iranianos) até o mar Mediterrâneo, fazendo
fronteira no sul com o deserto e no norte com os turcos, ou seja, engolindo até
Israel! Na Líbia a guerra civil continua, embora agora invertida, com as forças
republicanas ao sul e os fanáticos no litoral, brigando entre si, inclusive. O
Egito se argelinizou e a Argélia continua na mesma guerra civil de baixa
intensidade há duas décadas. A Arábia Saudita e os emirados mais ricos têm
escapado da onda gastando muito dinheiro dentro e fora de seus países, e enviar
jovens para lutarem na Líbia e na Síria não deixa de ser também uma forma de
afastar jovens possivelmente turbulentos, uma válvula de escape social e
econômica. Já os satélites pobres da Arábia Saudita têm tido problemas,
chegando à guerra civil. O Irã tem escapado de problemas maiores em seu
território. Pode-se alegar que o Irã não é árabe, mas os paquistaneses também
não são, são indianos, e os afegãos também não são árabes, e no entanto são
palco do conflito. A diferença é que no Irã a hegemonia chia é bem maior, e o
Irã está, assim como a Argélia, treinado por décadas de enfrentamentos com as
maiores potências da Terra, além de ser uma potência econômica regional. O
envolvimento do Irã é apoiando seus aliados no campo de batalha, destacadamente
o governo da Síria, os chias no Iraque e no Líbano, pois para sua própria
segurança não pode perder esses aliados. Fora do mundo islâmico os EUA, a
Europa, a China e a Rússia estão também cada dia mais envolvidas nos conflitos.
EUA e seus rabos europeus financiando e armando os grupos fundamentalistas
sunas, China e Rússia sendo elas próprias, com destaque para a Rússia, atacadas
pelos fundamentalistas! A Rússia já ameaçou reagir atacando a Arábia Saudita, a
quem acusa de financiar o terrorismo. Só essa informação basta para entender a
dimensão que a coisa está tomando. O objetivo desse artigo é compreender porque
fracassou a Primavera Árabe.
Antes,
porém, é necessário tratar um pouco da suprema questão do Estado. Anos atrás,
quando pela primeira vez soube que Noberto Bobbio acusara o marxismo de não ter
uma teoria do Estado, fiquei pasmo, chocado em encontrar uma declaração tão
absurda, ignorante mesmo, vinda de uma pessoa mundialmente reconhecida como
culta. Foi uma de minhas decepções com o mundo acadêmico, que começaram logo na
minha primeira ou segunda semana como calouro na década de 90.
Hoje,
porém, nutro a esperança de que Bobbio não estivesse dizendo uma “batata”, como
popularmente se diz, mas sim fazendo uma provocação muito necessária! Fato é
que desde Lênin e Gramsci a teoria marxista sobre o Estado não avança. De fato,
grande maioria entre os marxistas foge desse debate como o diabo foge da cruz.
Pretendem que o assunto esteja resolvido, portanto pretendem que o assunto se
limite à questão geral do conteúdo de classe, do poder, da hegemonia.
Mas não se
limita! Se tudo o que interessa aos marxistas sobre o Estado fosse a questão do
conteúdo não teriam existido e ainda existiriam tantos Estados proletários
completamente diferentes uns dos outros... Quem pode negar o caráter proletário
da Comuna de Paris, dos Soviets, de Cuba, do Vietnã, da Coréia, da Albânia, da
Iuguslávia, da Thecoeslováquia, Nepal, talvez a Venezuela etc.? Porque não eram
idênticos em seus sistemas políticos, ou ao menos mais parecidos? As diferenças
seriam só aparentes? Não teriam importância? Por que então uns desapareceram há
20 anos e outros continuam de pé? Por que uns se destacam na medicina, na
educação, nas artes, nos esportes, e outros na engenharia, na tecnologia etc.?
De fato,
são necessários estudos marxistas sobre os Estados proletários desde a Comuna
de 1871 até hoje. Esses estudos precisam atentar sobre as formas, os designers,
as constituições oficiais e reais de cada uma dessas sociedades. É comum entre
os marxistas uma simplificação deturpadora segundo a qual a democracia é só uma
forma do Estado, mas que o que interessa mesmo é o conteúdo de classes desse
Estado, e que uma mesma classe pode dominar com diferentes formas de Estado.
Isso é visivelmente errado! Forma e conteúdo não são indissociáveis, pelo
contrário, é o formato assim ou assado que garante o poder dessa ou daquela classe!
Quando os communards decidiram que os deputados da Comuna poderiam ser depostos
pelos eleitores, o que era isso se não uma questão de formato, e o que garantia
se não o poder proletário? Quando os Soviets surgiram, em cada fábrica, em cada
quartel, em cada escola etc., cada um enviando um delegado ao Soviet muncipal,
e cada Soviet municipal enviando um delegado aos Soviets regionais e nacionais
etc., o que era isso se não um designer, um desenho, uma estrutura determinada
de poder que garantia aos operários e soldados o poder? Por outro lado, as
eleições diretas no Brasil são o que, se não um determinado desenho de poder? E
garantem o poder a quem se não aos que têm grana para um jogo com essas regras?
Mas
entremos no assunto, a Primavera Árabe mergulhou em sangue! Os árabes correm o
risco, involuntariamente, de se tornaram o centro de uma guerra mundial. O que
aconteceu? Serão os árabes incapazes? Não é o que ensina a história! Mas já que
recorremos à história, é importante para todos os que se interessam pela
situação no mundo árabe que conheçam um pouco da história recente da Argélia.
De maioria árabe e muçulmana a Argélia era colônia francesa até meados do
século XX. O movimento de independência da Argélia sangrou a França inclusive
política e moralmente. Quando a Argélia conquistou sua independência, em 1962,
naturalmente, todas as forças políticas surgiram em campo, como em uma
Revolução, uma primavera árabe antecipada, e até o caminho socialista a Argélia
chegou a afirmar que seguiria. Contudo, o formato de poder adotado, eleições
diretas, acabou permitindo à Frente Islâmica de Libertação vencer as eleições
parlamentares de 1992... As forças laicas não suportaram e recorreram ao golpe
militar, e até hoje, passadas décadas a Argélia vive uma guerra civil de baixa
intensidade entre fanáticos muçulmanos e forças laicas. Naturalmente, nenhum
socialismo pode vicejar em tal terreno, pois os socialistas precisam estar
unidos a todas as forças laicas, ou seja, unidos a políticos e interesses de
classe capitalistas, contra os fanáticos que os enforcariam, e não podem,
portanto, fazer nenhuma grande ofensiva socialista.
O que
aconteceu como resultado da Primavera Árabe foi uma argelinização. No caso
egípcio quase o mesmo filme, com a vitória de um presidente que pretendia impor
leis de inspiração religiosa, obrigando a outra metade da população a reagir
aliando-se aos militares. Um regime político que concentra poderes em um
presidente, ou seja, a “democracia ocidental” no mundo árabe, é receita para o
fracasso de qualquer maneira, ainda mais sendo esse presidente eleito
diretamente. As massas ignorantes no mundo ocidental votam em charlatões e
bandidos, mas os charlatões e bandidos do mundo árabe tentam impor sua
charlatanice como lei! No Brasil já somos governados por charlatões e bandidos,
mas imagine se eles ainda quisessem proibir as mulheres de usarem calças,
proibir a bebida alcoólica, proibir o divórcio etc. Haveriam milhões de
brasileiros dispostos a apoiarem um golpe militar que depusesse tal governo, e
eu entre eles!
Às
potências ocidentais e à Arábia Saudita e seus satélites autocráticos pouco
importa se a “democracia ocidental” é o melhor ou não para os países árabes. Às
potências ocidentais interessa a destruição, que cria mercados, e a
possibilidade de tomar áreas de influência do Irã, da Rússia e da China. Para a
Europa sobretudo, interessa derrubar o regime sírio para afastar a influência
russa e poder passar pela Síria um gasoduto que faça concorrência com o gás
russo do qual hoje depende. A atual tática expansionista européia, na
impossibilidade de enfrentar a Rússia de frente, parece ser fomentar guerras
civis nas áreas de influência russa, como no caso ucraniano. Do ponto de vista
estratégico essa tática é temerária! Não faz nem um ano e meio que o presidente
da Rússia ameaçou atacar preventivamente e de surpresa ao mesmo tempo todas as
bases de mísseis que os visinhos da Rússia têm apontados para esse país, o que
inclui diversos países europeus...
A Arábia
Saudita disputa o poder regional, e os especialistas vêem uma guerra oculta
entre Arábia Saudita e Irã pelo poder no Islã. A Arábia Saudita tem financiado
grupos radicais sunas em todo o mundo islâmico, enquanto o Irã financia os
chias. Naturalmente, é mais complicado, o Irã, por exemplo, também apóia outras
forças não chias. No ocidente existe uma deturpação segundo a qual sunas seriam
moderados e chias radicais. Nunca foi e continua não sendo isso. Na origem a
divisão entre os adeptos da Suna e os chias era que os primeiros aceitaram o
poder dos califas que governaram depois do Profeta, enquanto os chias
questionavam esse poder, e só consideravam legítimo o governo de Ali, casado
com uma das filhas do Profeta, ou seja, a linha de sucessão direta. Aliás, chia
é uma abreviação de partido de Ali (shi at Ali) e Suna são preceitos (códigos,
normas, interpretações) estabelecidos no século VIII com base nos ensinamentos
do Profeta e dos primeiros quatro califas, não reconhecidos pelos chias. Embora
exista uma minoria de árabes chias (que entretanto são maioria no Iraque) o
ramo chia praticamente é persa. Da mesma forma, existem iranianos (persas)
sunas, mas são ínfima minoria. Hoje não existe mais traço da linha direta de
descendentes do Profeta, e a sucessão dos califas também há muito foi interrompida
por guerras civis e invasões. Portanto, hoje, na prática, os chias
organizaram-se sob comando religioso do Conselho de Aiatolás, que desde a
Revolução Islâmica iraniana de 1979 passou a ter grandes poderes na
constituição do Irã, exercendo ao mesmo tempo poderes de uma câmara alta, de
uma suprema corte e ainda de tribunal religioso, além de, nominalmente, chefiar
o Estado. Já os sunas, espalhados por todo o mundo árabe e ainda por países
muçulmanos não árabes, dividiu-se em uma miríade de direções religiosas, aqui o
Rei saudita, ali um Emir, acolá um chefe tribal, variando de país para país e
dentro de cada país... Então, na prática, é entre os sunas que se encontram
tanto os mais moderados ou modernos, quanto os fundamentalistas. Por exemplo, a
maioria dos grupos que hoje praticam terrorismo na verdade não são chias, mas
sunas, que têm uma leitura dogmática dos fundamentos do Islã, ou seja, d’Al
Corão, da Suna e da Sharia, que são sentenças judiciais aplicadas na época do
Profeta e dos califas, ou seja, dos séculos VII e VIII, e que esses grupos
pretendem que se mantenham como lei. Naturalmente, a maioria do povo árabe,
suna, tem uma visão moderna do Islã, e mesmo quanto falamos de forças laicas é
bom que se saiba que são gente que tem religião, são muçulmanos, só não querem
voltar a viver sob o tacão de califas e emires... Já os chias, desde que o
mesmo Conselho os dirige religiosamente e governa o Irã, não podem de fato ser
“radicais” (nem no sentido real da palavra, de pegar as coisas pela raiz, nem
no sentido deturpado, de ser extremista) pois o Conselho de Aiatolás não quer
atrair a guerra sobre o povo persa, assim como não podem ser muito moderados
pois afinal Aiatolás são sacerdotes, baseiam seu poder nisso, então têm que
defender sua religião.
Para a
Arábia Saudita a “democracia” importada do norte tem fornecido boas ocasiões
para impor o poder religioso, uma vez que eleições diretas são movidas a
dinheiro, o que não falta ao Rei. Depois, se os partidos religiosos são
depostos pelas armas, os sauditas fornecem-lhes armas para tentar tomar o poder
violentamente e impor um regime religioso.
Para os
países de maioria muçulmana é fácil cair na argelinização e difícil sair dela,
como se vê na própria Argélia. Acontece que mesmo que se tente a redemocratização,
a guerra civil dificilmente acaba, uma vez que essas redemocratizações (sempre
à moda ocidental) costumam ser acompanhadas da proibição dos partidos
religiosos. A base da força dos religiosos é naturalmente a ignorância, mas
esta também não pode ser combatida, pois os regimes religiosos a mantêm e os
laicos precisam estar unidos (direita e esquerda) e a presença da direita
impossibilita as reformas sociais que permitiriam os avanços educacionais
necessários.
Observemos
a Tunísia, onde venceu um partido islâmico moderado que não está tentando impor
a lei islâmica. Nada impede que nas próximas eleições partidos fundamentalistas
vençam e adeus paz... As forças hoje no poder, uma vez que são capitalistas e
não têm condições nem vontade de mudarem as condições sociais para melhor, só
vão se desgastar, e quem tem dinheiro para ocupar o lugar do governo decadente?
Uma dica: Não são os socialistas.
A
“democracia” ocidental não é boa nem para o ocidente, onde religião e Estado
estão separados (não perfeitamente, é verdade) há séculos, mas nos países onde
a religião predominante é eminentemente política (diretamente, partidariamente)
esse desenho de poder não serve nem mesmo à burguesia. Apesar de se disfarçarem
bem, essas ditas democracias têm o poder concentrado ou no presidente ou no
primeiro ministro, o que é explosivo em sociedades de maioria muçulmana. As
burguesias ocidentais desenvolveram por meio de um longo processo de tentativa
e erro o desenho geral de poder através do qual os proletários ficam em minoria
ou completamente excluídos por falta de dinheiro e os diferentes grupos de
burgueses disputam entre si os governos como em uma licitação, de forma que o
sistema quase nunca é colocado em risco. Mas esse desenvolvimento aconteceu
quando a igreja já estava excluída da disputa direta pelos governos. No mundo
muçulmano as forças religiosas envolvem-se diretamente e vencem! Pode-se alegar
que os partidos religiosos são também burgueses, mas mesmo que em sua
composição e financiamento isso fosse verdade, fato é que o projeto deles seria
avançado se fosse burguês! Mas não é, é medievalista.
O mundo
todo precisa de outro formato de Estado, com destaque para as Revoluções
Proletárias, mas os árabes só têm essa opção de um lado e a argelinização de
outro. O mundo árabe não parece estar econômica e socialmente pronto para uma
revolução socialista, muito menos ideologicamente, mas de qualquer forma os
comunistas árabes têm que propor uma saída avançada. A saída iraniana,
dividindo constitucionalmente o poder entre religiosos e sociedade civil laica
parece só servir para os persas, uma vez que já tinham um Conselho de Aiatolás
a quem respeitavam, enquanto entre os sunas o poder religioso é fracionado e
muitas vezes autárquico, confundindo-se com a autarquia governante. Os árabes
precisam reinventar a democracia, à moda árabe!
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