terça-feira, 5 de agosto de 2025

Trump acelera a queda do dólar

 


É verdade, como disse Trump, que a substituição do dólar como moeda de referência internacional equivaleria aos EUA perderem uma guerra mundial. Diga-se de passagem, foi a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tornaram-se uma superpotência econômica, que levou aos acordos de Bretton Woods, onde os países capitalistas acordaram usar o dólar como nova divisa internacional. Fixou-se então que os EUA poderiam emitir 35 dólares para cada onça que tivessem de ouro. Mas em 1973, tendo os EUA gasto muito ouro, e precisando gastar muito com a guerra no Vietnã, Washington rompeu essa parte dos acordos de Bretton Woods e o dólar passou a ser emitido a bel prazer do banco central estadunidense, o Federal Reserve. Desde então, os EUA se beneficiam de toda a emissão de dólares, e o mundo todo paga por sua desvalorização contínua. É uma forma de roubar o mundo todo. Devido a políticas econômicas liberais, os EUA se desindustrializaram nas últimas décadas, perdendo o verdadeiro lastro do dólar. Porque na verdade, embora os EUA não garantissem mais ter uma onça de ouro por cada 35 dólares, todo o planeta sabia que poderia conseguir qualquer mercadoria desejada por dólares, pois mesmo que algum país não aceitasse mais essa moeda, os próprios EUA teriam a mercadoria, graças à sua economia completa. Mas agora, os EUA importam muito mais, não só em dólares, mas na realidade, em mercadorias, do que exportam. O que sustenta esse luxo, e mantém o padrão de consumo dos estadunidenses elevado, é o dólar ser a moeda mundial. Portanto, realmente, se o dólar perder essa posição, a população dos EUA vai sofrer como a derrota de uma grande guerra, e as consequências são imprevisíveis.

Quando os EUA deixam de ser a fábrica do mundo, o dólar só se mantém como moeda principal por inércia. Existem uma série de instituições, de regulamentos que sustentam esse status, e mais que isso, o mercado está acostumado, e os governos todos, assim como as mais ricas empresas e bancos, têm reservas em dólares. Todos temem a quebra dessa moeda, pelo dinheiro que perderiam e pela desorganização do mercado que se seguiria. A China poderia quebrar o dólar amanhã de manhã, liberando de uma vez só sua reserva gigantesca, mas não o faz pelos dois motivos acima citados. O dólar é hoje uma bolha, ou seja, existem muitos dólares, e se eles todos fossem liberados, não haveria mercadorias para trocar por eles, e a bolha estouraria.

É verdade que o ambiente BRICS já está praticando o comércio sem dólares, e isso reduz a demando por essa moeda. A Rússia, cercada por bases militares dos EUA, há alguns anos usa sua imprensa e sua diplomacia para atacar o dólar, pois esse é o caminho mais fácil e menos doloroso para se livrar desses visinhos indesejáveis. O Irã, pelos mesmo motivos, também adoraria o debacle do dólar, mas tem menos poder que a Rússia para tanto. É um processo natural, uma vez que a China se tornou a principal economia do planeta, mas poderia ser muito lento, mesmo porque os chineses não estão com pressa.

As medidas pouco diplomáticas de Trump, por sua vez, são uma ameaça imediata ao dólar. Há meses Trump inventa e desinventa tarifas alfandegárias mal planejadas, que parecem mais um show do que reais. O protecionismo já foi fundamental para transformar os EUA em uma grande potência. Entre a guerra civil (1860-1865) e o início do século XX os EUA praticaram um protecionismo violento, que garantiu o desenvolvimento industrial, auxiliado, é claro, por outras ações estatais. Mas o protecionismo trumpista não tem nada a ver com isso. Não foi bem pensado de acordo com a realidade, como foi o do Lincoln. Por exemplo, o dólar não era a moeda mundial que garantia o bem estar dos estadunidenses, mas só mais uma moeda pouco confiável. A economia dos EUA ainda não precisava do mercado mundial. O objetivo de Lincoln era somente garantir o mercado dos EUA para as suas próprias indústrias. Ademais, praticamente o protecionismo de Lincoln, que gerou a guerra civil e foi por ela garantido, só prejudicava a Inglaterra e o sul dos EUA. A Inglaterra já praticava também um protecionismo tão elevado que não havia o que retaliar, e o sul foi esmagado e militarmente ocupado. Por exemplo, o Brasil, não tinha produtos industrializados, e o café, que a Inglaterra não recebia nem um grão, os EUA aceitavam, porque não produzem café. Hoje, pelo contrário, muitos países tendem a retaliar.

Hoje, os EUA são uma economia consumidora. Eles têm o dólar, têm empresas gerando lucros no exterior, têm direitos de patentes, e com esses ganhos, financeiros, mantém uma população ultra consumista, recebendo todo o tipo de mercadorias do exterior. O mercado consumidor dos EUA também não é mais suficiente para as empresas dos EUA. Para sustentar uma reindustrialização dos EUA em uma economia de mercado seria necessário a exclusividade sobre um mercado muito maior que o dos próprios EUA e seus capachos mais fiéis. Portanto, as taxas de Trump são insuficientes para obterem resultados merecedores de nota. Já o mal que elas causam aos EUA é enorme, pois reduzem o comércio do mundo todo com os EUA. Em outras palavras, reduz drasticamente a demanda por dólares.

Além das taxas, o vai e vem de Trump a respeito delas atrapalha muito o comércio. Nesse aspecto também é muito diferente de Lincoln, que afirmou desde a campanha que criaria taxas alfandegárias proibitivas. Na época, a Carolina do Sul informou que se separaria da União caso isso acontecesse. Lincoln venceu, a Carolina declarou secessão ainda em 1860. Lincoln tomou posse, confirmou as taxas exatamente como prometeu e a Carolina do Sul, para garantir que não pagaria as taxas alfandegárias, precisou tomar a fortaleza que dominava seu principal porto. Era o início de uma guerra de 5 anos, em que morreriam mais de 600 mil estadunidenses, mas Lincoln não recuou de suas taxas. As propostas que fez, os sulistas não aceitaram. Tendo prometido em campanha que não atacaria a escravidão, até 1863, Lincoln em suas propostas de paz aos confederados do sul, mantinha essa promessa. Chegou a demitir um general que libertou escravizados de fazendas sulistas, mas não recuou em suas taxas. A indústria do norte ainda não podia competir com a inglesa de igual para igual, até porque a navegação a vapor tinha se desenvolvido ao ponto de derrubar vinte vezes o valor dos fretes das mercadorias.

As tarifas de Trump não são planejadas com base em demandas das empresas dos EUA. O raciocínio usado se parece mais com o mercantilista – combater o déficit, o que não se aplica ao Brasil, mas foi a linha mestra das tarifas trumpistas, e a justificativa formal. E por que elas variam? Porque para Trump elas são moeda de negociação. Ele propagandeia a tarifa, o governo do país atingido reage, então ele negocia. Não se pode esquecer que isso é parte da experiência de vida dele – ser um negociador. O problema é que, quando o presidente dos EUA faz isso, gera enorme imprevisibilidade nos mercados. Ou seja, as empresas, tanto nos EUA quanto fora, tanto fornecedoras como compradoras, não sabem os preços que terão que pagar, e adiam fechar negócios, esperando que as coisas, nesse caso, as taxas, se definam, para saberem os preços, para saberem quanto podem comprar. Isso reduz o comércio com os EUA, portanto reduz a quantidade de dólares utilizados, ameaçando da hegemonia mundial dessa moeda.

Trump provavelmente avalia que “tem gordura para queimar” nesse aspecto, pois acha que o dólar podia cair um pouco de valor, por motivos protecionistas. Existem dois problemas com essa desvalorização planejada do dólar. Primeiro, que isso reduz o poder de compra dos eleitores, reduz a popularidade de Trump. Segundo, sendo o dólar uma bolha, essa operação pode ser perigosa.

Para entender esse desejo de Trump por um dólar um pouco menos valioso é hora de falar do protecionismo chinês. A China, alvo principal de Trump, têm feito declarações livre cambistas. Como fábrica do mundo, economia industrial de longe mais poderosa, é normal que isso interesse à China – que se deixe entrar os produtos chineses com o mínimo de taxas em todo o mundo. Mas a China pratica o mais eficiente protecionismo, que é a desvalorização do renminbi (moeda do povo). Para um chinês normal ele mesmo importar o que ele quiser fica caro, pois as moedas estrangeiras todas são caras. Isso, porém, não prejudica o chinês em nada, porque ele pode comprar de tudo mais barato na China, e o governo pode subsidiar as importações do que acha que deve ter preços acessíveis. Será que os EUA podem tentar a mesma coisa? É o que Trump diz desejar. Talvez um pouquinho. O Brasil certamente hoje não pode. Quase tudo aqui ficaria mais caro.

Há sinais negativos para o dólar. Um deles é que o ouro, padrão anterior ao dólar, está subindo de preço constantemente. Ora, valorizando-se sem parar, o ouro torna-se um concorrente perigoso para o dólar. EUA e Inglaterra tinham mecanismos de reduzir o preço do ouro, apesar da demanda desse metal ser maior que sua oferta. Vendem ouro, e também criaram papeis cujo valor supostamente se baseia no ouro, de forma a multiplicar a oferta. Mas esses mecanismos não estão funcionando bem de uns anos para cá. Os títulos pseudo-ouro perderam completamente sua eficácia de reduzir a demanda, pois todos sabem que se o dólar quebrar esses papéis quebram junto. EUA e Inglaterra não têm mais reservas suficientes para continuar criando oferta artificialmente. O grama do ouro já atingiu 600 reais.

Se a bolha do dólar estourar e principalmente se o dólar perder o status de moeda internacional, duas coisas diferentes mas que naturalmente se interligam, as conseqüências são inimagináveis, nos EUA e fora. Em todo o mundo reservas financeiras perderiam grande parte de seu valor. O ouro se valorizaria muito. A capacidade dos EUA de manter centenas de bases no exterior se reduziria drasticamente. Os aliados dos EUA, sobretudo os mais dependentes, a exemplo de Israel, Taiwan, Coréia do Sul e Ucrânia, ficariam em péssima situação. O poder de compra de energia e matérias primas dos EUA se reduziria muito, abalando profundamente as condições de vida da população estadunidense. Os EUA viveriam então problemas internos graves, igualmente imprevisíveis.

O que Trump deveria fazer para manter o status do dólar? O oposto do que vem fazendo. Devia garantir os EUA como um mercado aberto, onde todos podem comprar e vender de tudo, e que o dólar pode ser utilizado até pelos piores inimigos dos EUA. Mas nesse caso, como concorrer com a China? Na verdade, para concorrer com a China protecionismo é muito insuficiente. A única maneira de chegar ao patamar da China seria os EUA fazerem a sua própria revolução socialista, ou tomar medidas socialistas sem fazer revolução nenhuma. O método socialista de industrialização não necessita de protecionismo, porque não necessita de mercado – o Estado cria e pronto. Com que dinheiro? Na verdade os Estado emitem dinheiro, de forma que o que lhes falta é energia, matérias primas e trabalhadores (onde de fato se incluí a tecnologia). Mas para agradar aos mais simplórios que não entendem o dinheiro, podemos responder que as coisas só podem vir de onde estão. Em todo país capitalista o dinheiro está concentrado pelos ricos, e é daí que tem que sair, caso não se queira emitir. Trump está fazendo o oposto disso.

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