O mundo todo voltou suas atenções para as manifestações da
direita de Cuba, que eram previsíveis por três fatores. Primeiro, Raul Castro
se afastou da direção do Partido, e portanto é normal que a direita promovesse
uma ofensiva para testar os novos dirigentes. Segundo, os EUA têm um novo
presidente, que naturalmente está testando novas táticas contra Cuba. Terceiro,
a crise econômica mundial, que está afetando vários países. Nos mesmos dias em
que aconteceram manifestações em Cuba, sem mortes, na África do Sul aconteceram
manifestações com mais de 70 mortes, e ninguém noticiou. É uma confissão do
fracasso do capitalismo – em um país capitalista distúrbios, violência
policial, mortes, são esperadas, não são notícia. Em Cuba meia dúzia de
direitistas viram sensação.
Contudo, toda vez que a direita mostra as patas em Cuba vem
à tona um assunto que precisamos debater – as eleições diretas. A direita diz
que Cuba não é uma democracia, e o principal argumento deles é que os chefes de
governo não são eleitos diretamente. Este é, certamente, o mais forte argumento
da direita, o que se pode aferir pelo fato dele rachar a esquerda. Parte da
esquerda, sobretudo trotskistas e socialdemocratas, também chamam Cuba de ditadura,
e usam o mesmo argumento.
Mesmo os comunistas fogem desse debate! Os socialdemocratas
e trotskistas estão confessamente ao lado das eleições diretas de chefes de
governo, mas mesmo os comunistas se esquivam. Não querem ficar isolados, então
aceitam uma mentira, ou convivem com ela, ou a questionam somente com um
palavreado que só os iniciados entendem. Ao invés de criticarem as eleições
diretas, criticam a “democracia burguesa”, e sem apontar soluções. Outra forma
de fuga é lembrar somente das eleições direitas que existem em Cuba, que são as
parlamentares, e não responder à questão – por que os chefes de executivos
também não são eleitos diretamente? É trabalho comunista, talvez o principal,
responder a essa questão. Sem isso, não se está lutando pelo poder do
proletariado.
Os socialdemocratas fazem um pouco pior, porque eles
desculpam as eleições diretas. Se elas não representam a vontade popular seria
porque falta uma “democracia econômica, cultural etc.”. Em outras palavras, os
problemas sociais, tornando o povo ignorante e miserável, é que impediriam as
eleições diretas de funcionarem bem.
Para ajudar a entender o assunto é mister apresentar a
seguinte experiência, que pode ser reproduzida por qualquer professor que dê
aulas para uma turma de eleitores de direita. Era uma turma de adultos fazendo
supletivo, todos eleitores de um prefeito clientelista, corrupto, que finge
falar errado, cujos próprios cabos eleitorais dizem que “rouba mas faz”. Isso
foi conferido com uma eleição direta, secreta, e eram mesmo 90% eleitores do
prefeito reeleito, ou seja, conhecido na prática. O que o prefeito que eles
sempre elegem faz é asfaltar ruas e clientelismo de todo tipo (dizem que tem
relações com a fábrica de asfalto). Foram colocados em grupos, como naturalmente
se faz trabalhos em sala, e cada grupo foi instruído a fazer a lista das cinco
coisas que priorizariam se fossem o prefeito. Fiquei esperando “asfalto”,
“obras”, “festas”, mas todos os grupos colocaram em primeiro lugar “saúde”, em
segundo “educação”, e em terceiro disputaram “empregos” e “segurança”. Só em um
grupo, em quinto lugar, apareceu “obras”...
Fiquei surpreso porque acreditei no sofisma das eleições, ou
seja, acreditei que podia conhecer as opiniões das pessoas se soubesse em quem
elas tinham votado. Acreditei na representatividade das eleições, e estava
redondamente errado. Depois, observando algumas estatísticas, percebi que as
informações desse experimento eram só confirmações do que pesquisas mais amplas
já tinham encontrado. Que povo não quer saúde, educação, empregos e segurança?
Se o povo mandasse diretamente como na experiência, escolheria “saúde”,
“educação” etc., mas como elege os mandatários – “asfalto”.
Os alunos também ficaram sem respostas, porque eles também,
naturalmente, acreditam no sofisma eleitoral, e assumiram a “culpa”, dizendo
que não sabiam votar.
Não existe saber votar. Em países muito mais cultos o
fracasso é o mesmo. Nas Universidades Federais as eleições de reitor são
igualmente vergonhosas, desde as baixarias pré-eleitorais, passando pelas
baixarias eleitorais, até os resultados. Para que eleger pessoas resultasse em
democracia uma das muitas coisas necessárias seria que os eleitores sempre
votassem pensando nos projetos dos candidatos, pois só então estariam decidindo
o que querem – saúde ou asfalto? Mas é claro que não acontece assim, a escolha
é entre pessoas. Existe uma coisa na qual os humanos são realmente muito ruins
– é em escolher pessoas. Erram na escolha de amigos, parceiros sexuais,
empregados, e nesse último caso mesmo profissionais treinados cometem erros.
Grandes empresas, cheias de profissionais de nível superior treinados em
contratação, não acertam em 100% das contratações.
Pessoas são boas para decidir coisas, mas péssimas para
escolher pessoas. Escolher outra pessoa é um exercício de adivinhação. As
pessoas se enganam sobre os próprios filhos. Se somos ruins para escolher até
amigos, como se pode imaginar que o povo despolitizado não seja enganado por
políticos profissionais? Quanto maior a eleição, mais o candidato é um
personagem, criado por marqueteiros. Equipes de psicólogos não acertam 100% da
contratação de gente semianalfabeta, e querem que gente semianalfabeta não se
deixe enganar por raposas da política?
Eleições diretas são só um sofisma, uma mentira bem contada,
que funciona assim – o poder é (deveria ser) do povo; o povo elegeu fulano; portanto
o poder de fulano é o poder do povo... É aí que está a mentira. O poder da
pessoa eleita é da pessoa eleita, não é de fato dos eleitores. Nunca foi!
Nenhum país em que o povo elege seus chefes de governo diretamente é de fato
governado pelo povo, e na maioria das vezes são governados contra o povo. É
hora de reconhecer isso, porque só desse reconhecimento pode sair a solução.
É o dinheiro que vence as eleições diretas. São os poderes
financeiros que têm seus desejos representados. As eleições são só uma forma
inteligente de legitimar esse poder. Em outras palavras, eleições diretas de
chefes de governo e poder da burguesia são uma coisa só. Quem defende eleições
diretas de chefes de governo está defendendo o capitalismo, a destruição
ambiental, a corrupção e o fracasso da humanidade.
Se responder com obviedades fosse suficiente, bastaria
lembrar ao leitor da realidade do próprio Brasil, onde o povo não manda em
nada, não só não manda na União e nos estados, mas não manda em nem um só
município dentre os mais de 5 mil. Porém, infelizmente, não basta. A história
humana é também a história dos enganos humanos, e das longas lutas para
superá-los. Foram milênios acreditando em reis divinos ou cujo poder era divino,
por mais reis completamente imbecis ou criminosos que tenham existido... E
eleição direta ser democracia é uma mentira muito mais bem contada.
A história desmente completamente que eleições direitas
representem poder popular, em todos os países, o tempo todo. Contudo,
observemos alguns exemplos importantes ou contundentes. Poucos prestam atenção,
mas foram as eleições diretas que deram o golpe mortal na União Soviética.
Ainda existia URSS quando foram eleitos diretamente Boris Yeltsin e presidentes
de cada um dos países que compunham a União. Eleitos, com o poder que eleições
conferem a um só indivíduo, eles tomaram o poder em seus países, destruindo o
socialismo e implantando regimes autoritários, corruptos e ineficientes. Meses
antes, em plebiscito, o povo soviético tinha decidido manter a União e o
socialismo, mas como elegeram diretamente seus chefes de governo, estes não
cumpriram o desejo do povo. Ou seja, muito claramente o poder do povo soviético
acabou de vez exatamente quando esse povo pode eleger presidentes.
O caso recente do Equador merece também atenção por ser
escandaloso. Lênin Moreno foi eleito pela esquerda, traiu abertamente seus
eleitores e iniciou contra eles tremenda repressão. A Venezuela devia prestar
atenção nisso – o maior perigo que a Revolução enfrenta na Venezuela são
exatamente as eleições presidenciais. Uma só vitória da direita e as duas
décadas de Revolução seriam jogadas no lixo em poucos meses... Se querem manter
a Revolução e fazê-la avançar deviam adotar aspectos do modelo político cubano.
A Rússia corre o mesmo risco, por mais poderosa que seja, como já experimentou
com Yeltsin.
Os casos apontados indicam um dos piores defeitos da eleição
direta de chefes de governo. Exatamente por serem eleitos eles ficam muito
fortes, se arrogam poder e as pessoas realmente reconhecem que eles têm esse
poder. Tornam-se perigosos para a sociedade. Ou seja, quanto mais alto o posto,
ou seja, quanto maior o número de eleitores, não só o dinheiro tem mais
influência como maior é o poder concentrado no eleito. Um presidente eleito, em
um único ano, pode destruir o que um país construiu em vinte anos.
Depor um governante que não teve o voto popular é fácil para
qualquer parlamento, ou para a justiça, mas no caso de um presidente eleito é
uma anormalidade, um processo conflituoso, tenso, às vezes violento. É errado
eleger diretamente os chefes de governo.
O problema das críticas às eleições diretas é que quase
sempre elas terminam sem propor nada de melhor, ou nenhum aprimoramento. A
observação dos fenômenos que descrevi acima e mais uma vasta experiência humana
apontam aprimoramentos até óbvios.
1 - Se as eleições diretas concentram muito poder em uma só
pessoa, o óbvio é fazer muitas eleições pequenas, ao invés de poucas grandes.
Eleger um monte de gente sem muito poder pessoal, cujo poder só possa se
manifestar em conjunto, enquanto parlamento. Os outros postos, como Primeiro
Ministro, seriam preenchidos de forma parlamentarista. É fácil notar que não só
os países socialistas, Cuba, China, Vietnã etc., mas também os de maior sucesso
entre os capitalistas, como Alemanha, Suécia etc., são parlamentaristas. Os
socialistas normalmente são mais parlamentaristas ainda, porque o são completamente
– em Cuba, por exemplo, o parlamento indica não só o chefe do governo, mas
todos os seus membros, e também indica os postos mais elevados do judiciário. E
o parlamento não é atrapalhado pelas irresponsabilidades de nenhum indivíduo empoderado
pelo voto popular. Só o parlamento é empoderado pelo voto popular! E assim se
responde porque Cuba não tem eleições diretas para chefe de governo – porque
assim é mais democrático.
2 - Se humanos não são muito eficientes para escolher
pessoas, o óbvio é fazer, como fazem com amigos, namorados e empregados – o
povo precisa do poder de demitir seus empregados. Essa foi talvez a mais
revolucionária das bandeiras praticadas pela Comuna de Paris. Depois foi
incorporada pelos Soviets. Existe em Cuba e na China. Existe em vários estados
dos Estados Unidos. Existe em alguns locais da Europa. O parlamentarismo já faz
isso com os primeiros ministros, mas esses exemplos citados são casos em que os
próprios eleitores podem depor os parlamentares.
Existem dezenas de organizações no Brasil que se pretendem
comunistas, pretendem lutar pelo poder do proletariado, contra o capitalismo,
mas não discutem o formato do Estado. Defendem conceitos, palavras bonitas,
“poder popular”, “ditadura do proletariado”, “República dos trabalhadores”,
“democracia socialista”, “democracia participativa” etc., mas não explicam como
seria o formato do Estado. A desculpa, bem mentirosa e sem vergonha, é que isso
seria assunto para depois da Revolução, como se revoluções fizessem outra coisa
além do que já se debatia antes delas... Combater o poder do capital é combater
determinadas formas de governo, é combater eleições diretas de chefes de
governo, é combater mandatos que não podem ser revogados, é combater eleições
em circuncisões eleitorais muito grandes etc. Ou será que acreditam que não
haverá eleições depois da Revolução? Se determinadas regras eleitorais serão
boas para depois de uma Revolução, por que não seriam boas para serem propostas
desde já?
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