O fracasso das eleições brasileiras de 2014


As pesquisas indicam que 70% do povo brasileiro queria mudanças, e Junho não demonstrou outra coisa. Aliás, desde Junho os choques entre a população e as forças do Estado se multiplicaram, explodindo toda vez que o abuso da força policial ultrapassa a paciência popular. Contudo, nem mesmo da polarização PT-PSDB, que já dura 20 anos, os brasileiros se livraram. O Congresso Nacional, por sua vez, vem ainda mais conservador em 2015, contrariando por completo a vontade do povo. A velha conclusão de que o povo não sabe votar não passa de enganação, pois não existe saber pilotar um carro estragado. Não é o povo, são as eleições que fracassaram. Fracassaram devido ao que são, e devido à avançada degeneração de nossa sociedade. 

Naturalmente, nenhuma eleição desse nosso regime político e de similares (as “democracias ocidentais”) resulta na vontade de fato do povo. Esse regime não é uma democracia no estrito senso de “poder do povão”, “poder dos eleitores”, “poder de muitos” ou seja lá como se preferir traduzir o termo “demos”. Todos sabemos disso em teoria, ao menos todos os que estudamos. Contudo, o regime só funciona enquanto o povo acha que participa, que manda, e assume a culpa por ter eleito bandidos. Ou seja, os intelectuais sabem que a democracia que temos é uma farsa, mas a massa do povo não sabe. A função desse regime é legitimar o poder dos capitalistas, que assim destroem o mundo jogando a culpa no povo. Quando falamos de fracasso das eleições, portanto, não nos referimos ao fato de serem eleitos carrascos do povo e de o povo não mandar em nada, pois isso é normal nesse regime, é o método do roubo, não um defeito.

Porém, as eleições fracassaram exatamente em enganar o povo, pois ficou claro que não servem para mudança nenhuma. Os candidatos disputando o segundo turno não servem para gerar a sensação de mudança de que o regime precisava. Na medida em que o povo fica decepcionado, cresce a percepção de que o regime é autoritário, e que as eleições diretas são sua capa. A enganação funcionou mal, portanto, no seu objetivo principal, as eleições fracassaram. Os “analistas” que relacionam Junho às eleições e chegam à “genial” conclusão de que Junho saiu pela culatra, além de já terem se esquecido (se é que um dia entenderam) o que foi Junho, “esquecem” de mencionar que dos 140 milhões de eleitores, sendo o voto obrigatório, 40 milhões ou votaram nulo, ou branco, ou nem sequer foram votar. Cerca de 2 milhões votaram em candidatos nanicos, ou seja, uma outra forma de nulo, de repúdio ao regime político.

Junho foi anti eleitoral, e para combater Junho muita gente apostou nas eleições de 2014. As mudanças não viriam das ruas, mas das urnas! A experiência de 30 anos do povo estaria errada, e as urnas, uma primeira vez na história humana, salvariam uma nação... As eleições foram o que sempre foram. Enquanto jogo político muito importantes, mas em seus resultados propriamente eleitorais a legitimação do poder econômico, e enquanto salvação de alguma coisa, pura piada. Em relação ao sentimento de mudança do povo, um fracasso. O resultado desse fracasso se verá nas ruas. Se nas urnas não se consegue mudar nada, o eleitorado voltará às ruas, dessa vez mais nervoso e decidido que em 2013, embora ainda sem programa. Nem Dilma, nem Aécio (nem Marina), têm condições de impedir isso, completamente atrelados que estão a interesses sujos e crenças velhas.

Claramente, o capital tem dado muito apoio a Dilma, e a fará vencer, atropelando seus próprios partidários (sim, o capital atropela os capitalistas com freqüência), pois as decisões da maioria das grandes coorporações não são tomadas por bobos que acreditam no conto de fadas de Adam Smith, mas por pessoas realistas, que sabem que o PT contém o movimento socialista adormecido no Brasil, enfraquecendo os grupos mais à esquerda, e ainda divide os movimentos sociais. O caso do MST, movimento social mais midiático e mais odiado pela direita, é claro. O MST está parado, comprado pelo governo, mas não se venderia a qualquer governo, só ao do PT. Note-se que interessante, e quanto lembra o 18 Brumário – os capitalistas em massa, somando seus vários setores, estão com Aécio, irrefletidamente, por simples sentimento e crenças de classe, mas uma certa parte dos capitalistas, a parte mais rica, mais poderosa, mais atrasada, assim como seus políticos mais tradicionais, está com Dilma, pois tem governado com ela, ganha dinheiro ao lado dela e do Barba como nunca se ganhou, conteve Junho ao lado dela, e tem medo de ter que enfrentar outros junhos sem um governo que consiga dividir os trabalhadores. Em outras palavras, a percepção dos capitalistas em geral de que o Estado é uma máfia que lhes arranca dinheiro, para a maioria dos capitalistas é também verdade, pois só uma minoria entre os capitalistas lucra com o Estado, e é a mesma minoria já presente no 18 Brumário, agiotas e bandidos, o lupen da burguesia. Portanto, o PSDB é para a burguesia o que o PT é para os trabalhadores, um lupesinato que se especializou em ganhar votos com base nas esperanças desesperadas (sim, é isso mesmo, por estranho que pareça) dos pequeno-burgueses, burgueses médios, burgueses grandes mas não tanto, em resumo, os 90% da burguesia que são lesados, feitos de trouxas como os trabalhadores são feitos pelo PT.

Por um tempo, o capital ficou um tanto quanto enfraquecido, enquanto as TVs abertas perdiam espaço e a internet ganhava. Em Junho de 2013, por exemplo, não se via nas mãos dos manifestantes bandeiras que fossem de origem nas pautas das TVs e grandes jornais. A Internet pautou as manifestações! Na época a rede de destaque era o Facebook, e pode-se dizer que só se via cartazes oriundos diretamente dessa rede, portanto, dos internautas. Agora, o capital está retomando espaço. Primeiro, conseguiu limitar o Facebook, fazendo com que as postagens não sejam vistas por muita gente, reduzindo-as, na verdade, a menos do que se pode fazer com panfletos. Em segundo, descobriram os provedores gratuitos de e-mail como potência da internet. Vários sites que oferecem e-mails gratuitos têm um verdadeiro jornal na página inicial, de forma que todos os donos de e-mails, praticamente todos os dias, são submetidos às manchetes dessas páginas. A esquerda brasileira, com a imprevidência e desorganização de sempre, não oferece e-mails a seus correligionários e simpatizantes.

Esse poder de fogo que os capitalistas retomaram serviu para bombardear Marina. Ela não seria muito diferente dos seus contendores, mas reduziria o PSDB a uma sigla de menor importância, colocaria fim à carreira do protegido das elites e poderia derrotar o PT, iniciando uma fase de redefinições políticas. Em outras palavras, não era ela pelo governo que faria (tão capitalista quanto os outros dois), mas pelos resultados eleitorais em si. Ela daria ao povo a sensação de mudança que daria sobrevida ao regime. Porém, eleições são dinheiro, máquina e imprensa! Nem os capitalistas pragmáticos aliados ao PT, nem os capitalistas ideológicos encastelados no PSDB quiseram correr o risco. Quem mais recebeu doações foi Dilma, o segundo foi Aécio e Marina em terceiro, e assim ficou o resultado final. Longe de mim dizer que Marina não cometeu erros graves. Cometeu, sim, e caiu também por isso. Marina e seus apoiadores parecem ser daqueles que querem esquecer que as classes existem, ou aniquilá-las pela força do pensamento e da negação. Ela esqueceu que existe um proletariado e que é a maioria da nação. Além de cometer erros infantis, como respeitar a ordem de um pastor, seja ele qual for, mostrando que seria uma governante influenciável; Posar de serviçal dos EUA, papagaiando velhas mentiras sobre nossos aliados da América Latina e dos BRICS em um país cujas pesquisas indicam mais hostilidade aos EUA que nos países árabes; Falar de autonomia do Banco Central... Em resumo, ela disputou um eleitorado que já estava dividido e amarrado, de direita, e empurrou para longe o amplo e plural eleitorado de esquerda.

Parece que os amadores que dirigiram Marina acreditaram no eufemismo “classe média” e na charlatanice “nova classe média”. Não existe isso, “classe média”, que não passa de um eufemismo, ou seja, para não se chamar as pessoas de pobres se diz que são de classe média, assim como os ricos se dizem de classe média. Todo mundo é classe média, então ninguém é, isso não é um conceito sério. Portanto, “nova classe média” é uma charlatanice que estava sendo usada pelos tucanos para justificar a vitória fácil que parecia que o PT estava tendo. Segundo eles essa “nova classe média”, que por algum motivo decidiria a eleição, seria oriunda dos programas do governo, portanto os votos petistas seriam praticamente comprados. Os petistas só inverteram a invenção, e a usaram para afirmar que tinham retirado milhões da miséria, praticamente criando uma nova classe social. No mundo real as pesquisas mostram que a maior concentração de votos tucanos é entre os mais ricos e a concentração de votos petistas é no proletariado lato senso.

O proletariado brasileiro é mais numeroso hoje do que em qualquer período anterior. Só os trabalhadores formais são 50 milhões, de forma que podemos falar de no mínimo 80 milhões de proletários. No mínimo 15 milhões entres esses 80 são operários. Esse proletariado tem adeptos de todas as correntes políticas que existem, mas tem sido vagarosamente politizado, mais pela experiência do que por ajuda das esquerdas. Hoje pode-se afirmar que sentimentalmente o proletariado é majoritariamente de esquerda. Sentimentalmente em oposição a racionalmente. Por ser de esquerda o proletariado compreende um vago socialismo, muito mais parecido com o cristianismo que com o marxismo, mas também aberto a diversas outras tendências, como o blanquismo, o prodhounismo e não faltam nem os inventores de Falanstérios. A campanha petista compreendeu a força do proletariado e se voltou para ele como último remédio, e a campanha tucana também parece ter entendido isso. Por exemplo, uma proposta apresentada por Aécio é uma velha proposta de esquerda, engavetada pelo PT, de criar uma carreira nacional para os médicos, que resolveria definitivamente o problema dos municípios sem médicos, sem necessidade da ajuda estrangeira.

O segundo turno, seja qual for o resultado, não diminuirá o fracasso das eleições. Esse fiasco acontece nas vésperas de sérios problemas econômicos e daí sociais, agravados por problemas ambientais. Óbvio que nenhum dos três candidatos do regime teria condições de lidar com esses problemas, pois estão presos às crenças econômicas liberais, além de serem figuras sem envergadura para reformar o Estado. Se fossemos usar as palavras do tempo de Maquiavel diríamos que nenhum dos três tem a necessária virtú para tentar a Fortuna.

Já vivemos em meio a uma crise de autoridade que atinge todo o tecido social, desde as famílias, as salas de aula, até os quartéis. A participação política é crescente, como resposta aos problemas. Ou seja, chegou-se ao ponto em que as pessoas que normalmente não fazem política estão pensando em fazer porque os que fazem não conseguem resolver nada. Com a sociedade já assim, com sintomas de convulsão social, aproxima-se mais uma crise econômica mundial. A OPEP já reduziu para 2015 a previsão de produção de petróleo, o preço do aço já está caindo e a China anunciou que comprará e produzirá menos em 2015. Para o Brasil o fator China é mais pesado que para o resto do mundo. Um terço de nosso comércio exterior hoje é com a China. Um pouco que a China deixe de comprar terá forte impacto sobre nossa economia. Tem sido Beijing, e não Brasília, que tem livrado o Brasil da crise nos últimos anos.

Paralelamente aos fatores externos de crise econômica, temos grandes problemas internos. Nos falta, em geral, infraestrutura, pois a casta de políticos, por seus vínculos com empreiteiras, aferrou-se às crenças liberais, e portanto há décadas quase não se cria uma estrada, uma ferrovia, um porto, uma usina elétrica, nada! O problema de energia está se agravando pela falta de água na região sudeste, onde se produz o grosso da energia do país, na bacia do rio Grande. Essa região vive a maior seca de sua história conhecida, sendo que a época de chuvas de 2013 para 2014 praticamente foi seca. O país não pode crescer mais nada, pois não tem infraestrutura para tanto, e pode mesmo ter que diminuir a produção por falta de energia elétrica. Os crentes em Adam Smith não se dão por vencidos, talvez porque seja mais difícil conseguir os 10% de outra maneira, e não reconhecem que esse país só cresceu com a intervenção direta do Estado criando grandes empresas estatais. A tentativa de PT-PSDB nos últimos 20 anos tem sido tocar as obras públicas em parceria com o setor privado, ou seja, por meio de empreiteiras. Fracasso garantido! Certeza de materiais de péssima qualidade, mão-de-obra de menos, desperdícios, adiamentos etc. e lógico, muita corrupção. Ademais, encarece-se tudo, sejam os transportes, seja a energia. A “proposta” tucana é piorar isso um pouco mais, aumentando os lucros, ou seja, aumentando os preços de tudo. É por isso que só as estatais têm tido sucesso em impulsionar o crescimento brasileiro – porque podem ter prejuízo, de forma que podem, por exemplo, multiplicar a produção de energia, como já fizeram por duas vezes no século XX, e mesmo assim fornecer energia a um preço razoável. Porém, a dupla PT-PSDB é de tal incapacidade para resolver os problemas da nação que faz as estatais darem lucros e distribuí-los a acionistas, ou seja, as tornam inúteis, as tornam particulares na prática.

Com o desenho atual de Estado, tudo indica que as coisas só vão piorar. A incapacidade desse Estado se reformar é total, e o novo Congresso Nacional parece mais incapaz ainda de qualquer reforma que agrade ao povo. A direita tem uma proposta muito clara, e velha, a ditadura. O problema é que a esquerda não tem proposta nenhuma de Estado. A parte falsa, o bloco petista, defende esse desenho mesmo de poder, ou seja, o poder dos ladrões. A parte socialista defende um vago “poder popular”, com diferentes nomes, mas sempre vagamente. Não teria problema a proposta ser vaga se fosse acompanhada de exemplos, mas na verdade toda a esquerda brasileira tem sido aparelhista, ou seja, nos Sindicatos e nas entidades estudantis, usa esse mesmo desenho de poder, o mesmo golpismo eleitoral, para dominar, se encastelar, por vezes roubar. Ninguém tem moral para falar de poder popular enquanto não dá o exemplo nos espaços em que tem poder para tanto. Enquanto a esquerda socialista não tem coragem de abolir as eleições diretas e instituir formas de poder mais direto em Sindicatos e entidades estudantis, como o poder das entidades de base sobre os DCEs, não será acreditada quando falar de reformar o Estado. Se não reforma nem entidades estudantis, porque reformaria o Estado?

Comentários

Unknown disse…
É isso mesmo, bom texto, a classe média é um conceito muito amorfo, se levado a sério qualquer operário com uma remuneração maior que um salário mínimo seria classe média! tanto quanto um médico ou comerciante. É verdade que o socialismo não é odiado pelas classes trabalhadoras, elas só não acham possível por isso em prática e nem sabem que tipo de socialismo deveriam tentar construir.