EUA e UE querem guerra econômica mundial, Putin quer guerra de verdade e a China quer paz

Milhares de analistas políticos em todo o mundo concordam em considerar que os últimos meses revelaram um novo jogo de forças mundial, mais especificamente desde Julho de 2013 quando a Rússia impediu as potências ocidentais de bombardearem a Síria, confirmando-se agora com a reanexação da Criméia à Rússia. O que esses analistas não querem ver é que esses episódios não são isolados, mas sim o choque de interesses entre os maiores poderes mundiais, e que esses choques não resolveram nada, ou seja, não terminaram. A acomodação de interesses entre potências capitalistas nunca é fácil e indolor. Acrescente-se que há vários anos o mundo vive mergulhado em uma superprodução crônica, da qual a China é só um fator, embora de muito peso.

A imprensa das potências ocidentais, naturalmente, tenta lançar sobre a Rússia as responsabilidades, o protagonismo, e a Rússia de fato está jogando seu próprio jogo, mas o início das ações partiu das potências ocidentais. Com crescimento econômico muito baixo e crescentes dificuldades de vida entre suas populações, gerando inclusive explosões sociais, as potências ocidentais, ou mais precisamente suas classes dominantes, só conseguem imaginar saída na expansão imperialista e em guerras. É inesquecível que um candidato a presidente dos EUA pelo Partido Republicano, há menos de uma década, tinha como slogam “guerra e economia”! Ficou em segundo lugar. As guerras têm para esses governos a função de queimar estoques de armas, aquecer portanto a indústria bélica, enviar jovens inquietos e desempregados para bases no exterior, destruir coisas para depois reconstruí-las, além de conquistar recursos naturais.

Uma grande guerra total não interessa estrategicamente para as potências ocidentais. Os EUA, carro chefe da aliança, estão esgotados. Recrutar se tornou um trabalho difícil nos EUA mesmo levando-se em conta o desemprego. Está difícil dar baixa às tropas que já estão há muitos anos no exterior, pois não há substitutos. O uso de mercenários tem se multiplicado, elevando custos e gerando problemas. Os custos e o estado das tropas são inaceitáveis. Fala-se em redução do efetivo total, o que é bem razoável, visto que os EUA tem cerca de 900 bases espalhadas pelo planeta. Na guerra recente em que as potências ocidentais destruíram e retomaram a Líbia os EUA enviaram armas, mas não pessoal, com exceção dos navios que já estavam no Mediterrâneo. Na Síria e na Ucrânia os EUA já afirmaram que não enviarão forças. Tropas foram movimentadas para a Polônia contudo, e alguns aviões, e agora um destróier, ou seja, reforços simbólicos.

Mas o pior não é a situação dos EUA, que embora em decadência continuam sendo uma grande potência, e invulnerável por meio da guerra convencional, dada sua completa autonomia econômica. O que impede a OTAN de entrar em uma guerra total é a situação da Europa, completamente vulnerável. Primeiro, hoje a Europa depende do gás russo, sem o qual passariam por graves apertos, ou seja, a Rússia venceria fechando torneiras. Segundo, militarmente a Europa é fraca, dependente dos EUA. Terceiro, a Europa tem problemas internos titânicos. Em vários países da Europa cresce o movimento para deixar de usar o euro e voltar às moedas nacionais. Em todos os países da Europa há graves divisões sociais.

Então, as guerras que a OTAN deseja são laterais, são guerras em países periféricos, nas quais não arrisque sua posição em um resultado estrategicamente desfavorável. As vítimas serão os países que se mostrarem mais frágeis, mais abertos a algum tipo de intervenção. O imperialismo atua como um predador que escolhe como presas entre os membros pequeninos, ou machucados, ou muito velhos do rebanho. Não haja dúvidas, contudo, de que países que cercam a Rússia e a China são vítimas preferenciais da OTAN. Essas guerras no entanto, são pouca coisa para resolver o problema econômico das potências ocidentais. Esses países têm um problema a mais, que é sua cantilena imperialista adamsmitiana contra as medidas protecionistas e fortes intervenções estatais na economia. Fato é que, sobretudo diante das mercadorias chinesas, mas também diante do renascimento da Rússia, da crescente unidade latinoamericana e do crescimento de países como a Índia, as potências ocidentais precisam de medidas protecionistas e intervenções estatais, para não serem desindustrializadas. Como tomar essas medidas sem desmentir o discurso feito aos povos subalternos? Uma saída é o discurso de guerra, a tensão diplomática, para justificar uma guerra econômica. É o máximo que o ocidente pode fazer diretamente contra um país como a Rússia ou como a China, ou mesmo contra um Brasil. Uma guerra de palavras e medidas econômicas contra a Rússia ajudaria ainda a fortalecer a União Européia ao menos nos países orientais, onde se poderia criar uma cultura de medo dos russos, o que não seria novidade.

Tentar tirar da zona de influencia russa a Síria e a Ucrânia foi um erro de cálculo que já custou caro à OTAN, talvez animada demais pela vitória na Líbia, onde tinha todas as vantagens estratégicas do mundo, com uma gigantesca armada de guerra bem ao lado das mais importantes cidades líbias. A Rússia, primeiro, agiu por necessidade de autodefesa, ao defender Damasco. O embaixador russo já tinha avisado, “atacar Damasco é atacar Moscou”, e de fato dois tomarroques lançados pela OTAN contra Damasco foram abatidos com facilidade pelos russos em 2 de Julho de 2013, a mais rápida derrota já sofrida pela OTAN, e uma das mais significativas. Desde então os russos sentiram sua própria força e prestaram mais atenção às fraquezas da OTAN, e agora estão vendo nas provocações ocidentais uma chance de tratarem de seus próprios interesses. Acontece que os interesses russos vão além da Criméia.

A Rússia vive um renascimento, mas limitado. Volta a se afirmar como potência, mas agora tem problemas internos gigantescos. O renascimento da economia russa se deve à reestatização dos setores estratégicos da economia. O exemplo mais famoso do momento é a Gazprom, que tinha sido privatizada quando acabou a URSS e agora foi reestatizada. Essas reestatizações permitiram à Rússia reativar seu complexo militar, assim como permitem diversos outros usos políticos. Porém reestatização é diferente de ressocialização, de forma que a economia russa não está mais no abismo dos anos privatistas, mas também ainda não retornou sequer ao nível de quando caiu a URSS, e no ano passado cresceu só 1,5%. O povo russo, como mostram as pesquisas, tem saudades dos tempos soviéticos, e o Partido Comunista é a segunda força no país. Eis o problema de Putin e de seus aliados capitalistas, e eis onde entram o nacionalismo e a guerra na política de Putin. Não é novidade tentar usar a guerra para unificar um povo e ganhar popularidade, e de fato a popularidade de Putin subiu a 80%.

O uso do nacionalismo contra o socialismo foi difundido por Mussolini há um século atrás. Se o nacionalismo e a guerra não puderem conjurar o fantasma da volta do socialismo para sempre, ao menos o adiarão por algum tempo. O discurso de Putin ao reanexar a Criméia é cheio de mentiras contra a União Soviética, contra os bolcheviques e o Partido Comunista, embora também bata nos fascistas de Kiev. Ele acusa os bolcheviques de terem entregue a Criméia à Ucrânia, quando Kruschev não era um bolchevique, mas um traidor, e ucraniano, o que explica sua decisão, desonesta como diversas outras que tomou em seu desgoverno, que foi o primeiro de uma série de governos traidores que destruiriam a URSS, e dos quais Putin é só um herdeiro. Como os comunistas estão lado a lado com Putin tanto na Criméia como em diversos outros assuntos, essas pancadas demonstram do que ele tem medo.

A guerra deve estar parecendo uma boa ideia ao pessoal de Putin, que assim poderia exercer por um tempo um poder abertamente ditatorial. A guerra permitiria aos russos resolver um problema que lhes tem tirado o sono, que é uma cerca de bases de mísseis que as potências ocidentais insistem em montar nas fronteiras da Rússia, chamando de “escudo” o que na verdade é um cerco. Os russos estão sedentos por uma desculpa para destruírem todas essas bases em um ataque surpresa, Medvedev já o afirmou meses atrás. A Ucrânia ainda pode fornecer essa guerra em vários casos. Pode ser que nas eleições de Maio vença um candidato pró russo, o que agora ficou mais difícil com 2 milhões de eleitores pró russos a menos, pois viraram russos de vez. Nesse caso as forças golpistas teriam que dar outro golpe, dessa vez muito mais ilegítimo, o que seria um convite à guerra civil e às tropas russas. No caso mais provável de vitória dos golpistas, é provável que a eleição divida politicamente a Ucrânia, com o leste rico votando em peso em outro candidato, se até lá ainda fizer parte do país. A situação econômica não melhorará, pelo contrário, pois agora o gás russo que a Ucrânia recebia em troca de sediar a base naval russa tem que ser pago, e os empréstimos russos foram cortados. Os empréstimos ocidentais não são suficientes nem para normalizar a situação, e os golpistas no governo já anunciaram medidas de austeridade. A propaganda ocidental ameaça com a Ucrânia romper o pacto de não ter bombas atômicas, ou seja, aceitar a instalação de mísseis nucleares em seu território às portar de Moscou. Isso também seria um convite às tropas russas. O ideal para a Ucrânia, como o Partido Comunista da Ucrânia já declarou, seria a volta da União Soviética.

As declarações dos governantes russos mostram que eles são muito diferentes dos soviéticos. A União Soviética tinha uma estratégia de paz, algumas vezes inocente. Os russos capitalistas estão sedentos por usarem a força. Há alguns meses Putin ameaçou bombardear a Arábia Saudita caso ocorressem atentados terroristas nos Jogos de Inverno. Ora, a Arábia Saudita é forte concorrente da Rússia como exportadora de petróleo, e a URSS nunca fez semelhante ameaça nem pensou em algo parecido a não ser no caso de uma guerra mundial e com objetivos estratégicos. Mas no caso atual não se descarta que uma guerra seja usada pelos russos com finalidades completamente econômicas, como eliminar concorrentes.

Deve-se entender que para a Rússia uma guerra só econômica aceleraria uma nova revolução, pois agravaria as condições de vida. Porém, isso não impede que a Rússia também tenha suas estratégias de guerra econômica, entre as quais se destaca o sistema compensação em moedas nacionais entre Rússia, Índia, Brasil e China. Em outras palavras, esses países estão deixando de usar dólares para fazerem comércio entre si, o que enfraquece o dólar. De qualquer forma, a guerra econômica é pressuposto da guerra de verdade, e a Rússia está tomando medidas de boicote da economia ocidental até com mais entusiasmo do que o contrário. O momento, em que Putin tem 80% de aprovação, é o ideal para os russos tomarem medidas que encarecem o custo de vida dos próprios russos, como são muitas das medidas de guerra econômica. Há dias, os russos anunciaram uma nova ideia para a guerra econômica, o Projeto Águia Bicéfala, que consiste em retornar ao padrão ouro! A URSS usava o padrão ouro, mas só para o comércio exterior, e isso quando não era possível resolver por meio de escambo, mas o rublo era inconversível, de forma que não concorria entre as moedas mundiais. O projeto atual é muito mais ousado, é cunhar moedas de ouro, ou seja, o rublo, hoje conversível, realmente voltaria a valer ouro como as moedas valiam até o século XIX, e se tornaria então um moeda extremamente forte, valorizando-se junto com o ouro e valorizando o próprio ouro, que estaria sendo preso em moedas às toneladas. Trata-se de um projeto ousado, ainda em estudos, mas se der certo arrasará o euro e enfraquecerá muito o dólar. O euro já está em queda livre e a situação interna da Europa continua empurrando-o para baixo, sobretudo por culpa da crença monetarista pela qual se guiam os governos da Alemanha e da França. O dólar cai constantemente, embora devagar, há décadas, o que o mundo não nota porque as outras moedas caem junto, mas os consumidores dos EUA notam. Se o rublo realmente passar a valer ouro, lastro do o dólar abandonou em 1973, muitos governos e particulares passarão a fazer suas reservas em rublos e não mais em dólares, levando o dólar a uma desvalorização acelerada. Se esse plano russo dará certo ou não depende de fato das reservas de ouro russas. Se forem muito grandes, o plano dará certo, pois o ocidente já em crise não poderá comprar todas as moedas de ouro que forem sendo cunhadas pelos russos, mas se as reservas não forem tão grandes o ocidente se arriscará a comprará todo o ouro. Claro que encher os russos de dólares e euros não é nenhum ideal da OTAN, mas valeria a pena para derrotar esse novo plano, contudo, caso as reservas sejam maiores do que o esperado pelos ocidentais, eles terão acabado de sacrificar suas economias comprando ouro acima do preço de mercado, uma vez que logicamente as moedas terão que ser cunhadas um pouco acima do valor de seu peso. Dado o tamanho da Rússia acreditamos que suas reservas são suficientes, mas nesse caso só podemos chutar.

Se as potência ocidentais querem uma guerra só econômica com pequenas guerras de verdade em países pequenos, e Putin quer uma guerra para valer ao menos o suficiente para manter o capitalismo, a China quer a paz. Sim, a China está tomando todo o mercado mundial, colocando todos os concorrentes de joelhos só com suas exportações, importações e investimentos diretos, ela não precisa de nenhum dos dois tipos de guerra. É tão ampla a ofensiva econômica chinesa, sobretudo na África, que as escaramuças ocidentais não a abalam. A Líbia era um caso de ampla penetração chinesa. A OTAN atacou, iniciou uma guerra civil, e os chineses tiveram que sair, mas seus protestos foram formais. A China não pensou em enviar nenhum tipo de ajuda militar, não engrossou o tom com a OTAN, porque prejudica muito mais os países da OTAN espalhando dentro deles suas mercadorias baratas, e para isso é necessário não dar desculpas que os permitam barrar essas mercadorias. Claro, mais tempo, menos tempo, os ocidentais inventarão essas desculpas.

Assim como a imprensa ocidental esconde que a Rússia voltou a poder falar grosso porque reestatizou os setores estratégicos da economia, também não pode falar a verdade sobre a fonte do poderio econômico chinês. A versão popular é a da escravidão. Não é necessário ser expert em economia para saber que a escravidão é muito menos produtiva que o trabalho assalariado, e que é pior exatamente para o trabalho industrial. O trabalho escravo é também mais caro que o trabalho assalariado. Na verdade, não existe forma mais barata de trabalho que o trabalho assalariado, que é o suprassumo da escravidão. Claro que na China, assim como no Brasil, no EUA, em qualquer lugar, existe escravidão, mas ela é contra a lei, é perseguida e punida, mas certamente o senhores de escravos brasileiros têm penas mais brandas que os senhores de escravos dos EUA e da China. Em outras palavras, é certo que existe mais escravidão no Brasil, e nem por isso nossas mercadorias ficam baratas como as deles. Para quem pensa um pouco, e sabe que o Brasil já foi completamente movido por trabalho escravo, é fácil compreender que se escravidão desenvolvesse um país o Brasil teria se tornado uma potência na época da monarquia.

Fato é que os setores estratégicos da economia chinesa estão sob controle público, o que permite à China um planejamento de sua economia à moda socialista. A economia chinesa está no mercado, mas não é de fato de mercado, e mesmo os empresários particulares têm que obedecer ao planejamento central. Ademais, a China é o maior produtor de grãos do mundo, o que barateia o custo de vida. O salário médio, em qualquer cidade do mundo, não é arbitrário, não depende da vontade nem de empresários, nem de governos, pois varia conforme o custo de vida. Se a mão-de-obra chinesa é barata em dólares, é porque o custo de vida de um chinês é barato em dólares. Como isso é possível? A soma de duas coisas – por meio de uma economia planejada a China consegue satisfazer seu povo completamente com produção própria, em moeda local, e essa moeda local é hiperdesvalorizada (sim, a estratégia russa da Águia Bicéfala e a chinesa para sua moeda são completamente diferentes). A hiperdesvalorização da moeda faz com que um salário que pode pagar o aluguel, as roupas, a comida e outros gastos, não consiga comprar nem uma banana de fora da China, e para os desentendidos a imprensa capitalista mostra o valor do salário chinês em dólares, fortalecendo a lenda da escravidão. O que acontece de fato fortalece ainda mais a economia chinesa, pois todas a divisas ficam com o Estado, pouquíssimas para os cidadãos desperdiçarem.

Como o ocidente ou mesmo a Rússia, podem concorrer com isso? Podem acaso sustentarem suas populações exclusivamente com a própria produção? Ora, os chineses estão acostumados a um padrão de consumo muito mais baixo, e vivem em um país muito grande. Que pequeno país europeu pode chegar sequer perto de que seus salários sejam de fato pagos sem torrar divisas? Então, como poderiam derrubar o valor de suas moedas? Quase todo país do mundo é como o Brasil nesse caso, ou seja, se o real for hiperdesvalorizado faltará uma série de coisas aos brasileiros, pois elas são importadas. Na verdade, a China desenvolveu uma forma de guerra econômica na qual ela não precisa tomar nenhuma medida explícita ou de política externa. Somente com macro políticas econômicas internas a China está destruindo a economia dos rivais.

A China quer a paz, por isso está se preparando para a guerra, vis pacem, para bellum. Os governantes chineses têm afirmado, publicamente, que o país precisa se preparar para a terceira guerra mundial. A estratégia chinesa foi recentemente redefinida, refazendo uma aliança com a Rússia que foi desfeita na década de 60, depois da morte de Stálin, pela contra-revolução desestalinizadora. Essa aliança com a Rússia é natural, pois os inimigos são comuns, e ambos são países asiáticos em estratégias militares defensivas desse território, e suas economia são hoje complementares. A China, além de todo tipo de armamento para a guerra convencional, atômica e espacial, está começando a fabricar caças de guerra em escala industrial, em linhas de produção. Os motores são russos.

Naturalmente, por quanto mais tempo o Ocidente não conseguir inventar motivos explícitos para contra-atacar a economia chinesa, o chineses não fornecerão essa desculpa. Os países ocidentais, embora precisem da guerra econômica, têm até nesse campo uma limitação ao tratar com a China, que é a imensa reserva de dólares sob controle chinês. A liberação desses dólares no mercado derrubaria o valor do dólar de forma catastrófica para a economia dos EUA e de seus aliados. Na verdade, a China já está liberando muitos dólares, na medida em que é provocada ou com essa desculpa. Recentemente a China ameaçou os EUA de liberar seus dólares caso os EUA mantenham sua política para a Ucrânia. Ora, se a intervenção na Líbia, onde a China tinha muito mais interesses não irritou tanto os chineses, porque teriam se irritado com a Ucrânia? Só solidariedade aos russos? Ou será que os chineses estão concluindo que o dólar despencará de uma forma ou de outra e portanto arranjaram a desculpa que estava em mãos para anunciar que torrarão seus dólares? Desde a intervenção ocidental na Ucrânia, passando pela Síria e a Líbia incomodam a China, mas existem assuntos mais próximos em que a ação ocidental pode entornar o caldo, que são a Coréia e o Tibet. O ocidente mantém tropas concentradas contra a Coréia e instiga o separatismo no Tibet.

O palco principal da guerra para a qual os chineses se preparam seria a Ásia. Além dos interesses das potências, uma série de conflitos menores, não raro instigados pelas mesmas potências, mantêm a Ásia sob constante risco de explosão.

Um exemplo importante é o conflito entre Índia e Paquistão. A Índia é um dos BRICS, foi capaz de construir sua própria bomba atômica. Os EUA então forneceram bombas atômicas ao Paquistão. Indianos e paquistaneses são o mesmo povo, dividido em dois países sobretudo por diferenças religiosas. Contudo, a briga atual não é religiosa, mas sim pelos minérios da Caxemira. Entregar armas nucleares aos militares ditadores do Paquistão foi um crime, que só fortalece a divisão do subcontinente indiano e pode levar à morte de centenas de milhões de pessoas.

A Turquia também virou um perigo, sobretudo devido ao governo Erdogam, de um partido religioso. Erdogam tem ameaçado fazer guerra contra a Síria e de fato já apóia os fanáticos religiosos que tentam derrubar o governo civil. Parece que ele acredita que terá proteção da União Européia contra a Rússia. Ele devia observar direito a Ucrânia, que é Europa. Se a OTAN não moveu uma palha para ajudar europeus, irá brigar com a Rússia para defender um país asiático governado por um fanático religioso? O que os turcos podem conseguir se fizerem a guerra contra a Síria são duas coisas – perder um pedaço de território para o surgimento de uma país curdo, e ganharem visinhos russos em uma base naval no Bósforo, velho sonho russo.

Israel tem sido um perigo há muito tempo, e tem bombas atômicas. Talvez não exista volta para o caminho seguido por Israel. Ao tratarem os palestinos como os próprios judeus foram tratados pelos alemães, os israelenses se isolaram, se impopularizaram, vivem agora em paranóia. São permanentes as ameaças de Israel contra o Irã, embora a imprensa ocidental só divulgue o contrário, e Israel tem mesmo capacidade para executar um ataque surpresa contra qualquer país da região. Naturalmente, seria o início de uma grande guerra, e depois dela Israel poderia até crescer como deseja, mas mais provavelmente estaria extinto.

O fortalecimento do Irã, grande beneficiário da guerra contra o Iraque, que caiu no colo do Irã, desagrada não só Israel e as potências ocidentais, mas também a Arábia Saudita, que disputa o mundo árabe com o Irã. Por trás de chias e sunas (xiitas e sunitas segundo a imprensa “brasileira”) muitas vezes estão, respectivamente, iranianos e árabes. A Arábia Saudita está descontente com seus aliados estadunidenses, pois deseja mais dureza contra o Irã. Contudo, a família real saudita precisa dos EUA para se manter no poder, e aturará o que tiver que aturar. A válvula de escape tem sido o financiamento de grupos fanáticos sunas, que têm levado a guerra contra a Síria, o Iraque e ameaçam outros países, como a Rússia. A família real saudita deve estar muito isolada do mundo real, pois está se arriscando muito. Mesmo internamente a Arábia está mudando, tanto que para conter a Primavera Árabe por lá foi necessário ao Rei criar um programa de bolsas semelhante ao brasileiro, mas mais gordo. Talvez a atuação no exterior seja uma forma de enviar jovens turbulentos para outros países, mas agredir vários países ao mesmo tempo é uma tática desastrada até para os EUA, quanto mais para a Arábia, um país isolado, que por exemplo tem diferenças gritantes com Israel, parte da mesma aliança mundial liderada pelo EUA.

No caso de uma guerra, parece claro que a Austrália ficaria ao lado das potências ocidentais e tentaria aproveitar para realizar seus interesses. A Austrália é muito ligada culturalmente à Inglaterra e aos EUA, dificilmente teria opção. A África por sua vez seria um grande palco de luta, disputada ferozmente pelas potências sob o disfarce de guerras civis.

O que nos interessa mais de perto é a América Latina. Quais as conseqüências desse cenário para a América Latina? Em primeiro lugar, a guerra econômica nos atingirá com contornos diferentes dos que terá para as potências envolvidas. Entre as potências, haverá uma escalada de medidas de boicote às economias rivais, mas essas potências tentarão outro jogo com os países fracos como os africanos e latinoamericanos, que é o livre comércio, ou seja, tentarão conquistar nossos mercados e nos desindustrializar, ou seja, tentarão, como têm feito já há décadas, nos anexar economicamente. Não somos ainda vistos como rivais, mas como alvos em disputa.

Hoje a América Latina tem condições de resistir ao assédio econômico das potências e manter o livre comércio somente dentro do bloco, mais precisamente, do Mercosul. Nossa maior fraqueza, longe de ser econômica, é política. Existem em nossos países partidos que são praticamente recolonizadores, no caso brasileiro herdeiros do velho Partido Português. Essas forças são ricas, influentes e completamente vendidas às potências ocidentais. Quando o senado golpista do Paraguai tentou boicotar o Mercosul, primeiro barrando a Venezuela, depois se recusando a voltar ao bloco, as forças recolonizadoras comemoraram. Quando Hugo Chavéz morreu uma das esperanças que a mídia “brasileira”, completamente Partido Português, deixou escapar foi a do fim da Unasul e do Mercosul. Ora, o Mercosul era, antes mesmo de entrar a Venezuela, responsável por um terço do comércio exterior brasileiro, sendo que nosso principal mercado de produtos industrializados, pois nossos outros grandes parceiros comerciais, a China e os EUA, quase só compram matérias primas. A direita instalada no Brasil, portanto, não é brasileira.

As potências tentarão o livre comércio conosco, mas na prática fortalecerão suas medidas protecionistas, uma vez que a guerra econômica é precisamente para isso, e então os países latino americanos precisarão também de defesas, de protecionismo. Será então que o Mercosul passará por sua maior prova. Se as forças recolonizadoras conseguirem impor suas crenças no Brasil, nossos governantes continuarão defendendo o livre comércio quixotescamente, e os países menores serão obrigados a romper com o Mercosul para elevarem suas taxas por conta própria. Para evitar isso o Mercosul terá que tomar medidas protecionistas para o bloco todo, e aposentar o discurso livrecambista.

No princípio, por pior que se torne a guerra, ela se concentrará no velho mundo, mais precisamente na Ásia, mas se o conflito se prolongar, o que talvez com as novas armas e com as vantagens estratégicas chinesas e russas seja impossível, pode nos atingir. A guerra também pode nos atingir em seu prólogo, depois que os ocidentais estiverem derrotados na Ásia, quando os EUA podem tentar recuperar sua influencia sobre a América.

As potências ocidentais têm se especializado em usar serviços de inteligência para gerar guerras civis, e essa seria a primeira forma pela qual seríamos atingidos. Obviamente já existe a tentativa de fazer isso na Venezuela, o que seria um duro golpe contra o Mercosul e a Unasul. A Colômbia também poderia ser usada para criar uma guerra na floresta amazônica e nos Andes, pois os governos colombianos estão há anos completamente atrelados a Washington, cujo objetivo é eternizar a guerra civil. Verdade seja dita, bom mesmo para a Unasul e o Mercosul seria a vitória das FARC e a queda das elites criminosas de Bogotá, pois então a Colômbia se incorporaria ao nosso bloco imediatamente. Desapareceria o maior perigo que o Brasil tem nas fronteiras, que é o exército de 400 mil homens da Colômbia, armado com as melhores armas que os EUA podem fornecer. Por via das dúvidas, se o Brasil tivesse governos sérios nossas forças na Amazônia seria decuplicadas. Precisamos de uma grande base aérea no centro da região, de muitas embarcações de guerra espalhadas por todo canto com armas e equipamentos modernos, mais precisamente radares e mísseis antiaéreos, e de um complexo militar industrial capaz de sustentar nossas forças sem precisar receber constantes reforços da distante região sudeste. Hoje, as Forças Armadas se esforçam para defender a região amazônica, pela qual têm um carinho especial, mas na verdade dependem de linhas de fornecimento inviáveis em caso de guerra. Ademais, nossos efetivos são poucos, quase não têm aviões modernos e poucas e velhas são as embarcações da Marinha.

Enquanto o cenário mundial se anuvia, enquanto tocam os tambores de guerra, o Brasil continua desarmado. Quase naturalmente, no caso brasileiro mais por obra dos funcionários de carreira que dos governos, o Brasil se torna o grande beneficiário do Mercosul. Para inveja da Alemanha, que tenta anexar a Europa por um método semelhante, o Brasil praticamente está anexando economicamente a América Latina sem dar um tiro, sem ter problemas econômicos e quase sem gerar descontentamento mesmo nos vizinhos mais orgulhosos. A habilidade brasileira para isso está muito maior que a alemã. Na União Européia, em todos os países, existem fortes movimentos para deixar a União, deixar a zona do euro, e acusando a Alemanha de anexação. Esse sucesso brasileiro certamente não é do agrado de nossas velhas metrópoles. A grande diferença é que o Brasil sempre subestimou suas próprias forças, enquanto a Alemanha sempre as superestimou, assim a Alemanha tenta impor suas regras aos seus parceiros, enquanto o Brasil cede às regras dos vizinhos pequenos. A União Européia deu um passo gigantesco que foi a criação do euro, que por um lado é um sucesso, na medida em que imediatamente se tornou uma moeda mundial como o dólar, mas sob as crenças monetaristas alemãs está se tornando um problema, forçando os demais países a tomarem medidas recessivas, uma vez que não podem mais emitir moeda. Na América Latina só pensamos em uma moeda única para compensações entre os países, e isso é que permite que os países membros tenham a política econômica que bem entenderem sem que os outros membros tenham coisa alguma com isso. Ou seja, nossa fraqueza é nossa força.

Por fim, o cenário tem mudado muito rapidamente. Vou publicar esse ensaio porque é uma necessidade tentarmos compreender nosso mundo, mas sem ilusões de que permanecerá atual.

Comentários

Unknown disse…
Ei por favor tem como me explicar simplificadamente como está o cenário atual com esse avião da Malaysia abatido hj... E o Brasil... Apoiando a Rússia? Quais os riscos?
Não há riscos, muito menos para o Brasil... Se o avião foi abatido, e por quem ele foi abatido, e responsabilidade de quem caso ele tenha sido abatido, são assuntos que continuarão dividindo os dois lados... Talvez o governo de Kiev pretenda usar esse desastre para promover outro desastre, a escalada militar no leste da Ucrânia, mas essa parece ser uma ideia irresponsável e destinada ao fracasso... É chamar a Rússia para uma visita...
Este comentário foi removido pelo autor.
Agora se começa a desconfiar de que o avião foi abatido pela Ucrânia que teria confundido esse avião com o de Putin... Esse boato, sim, é perigoso...