Existiram no Brasil, e vou argumentar que ainda existem, os
chamados escravos de ganho. Esses escravos trabalhavam por conta própria.
Muitos não viviam com seus senhores, nem com nenhum senhor. Não tinham
capataz, não eram vigiados pelos seus donos. A grande diferença entre eles e
homens livres era que eles tinham que pagar o jornal, ou a diária, uma quantia
fixa, calculada por dia (mas que podia ser paga por semana, mês etc. conforme
combinado), para seus senhores. Por isso “de ganho”, na perspectiva dos
senhores, como se estes tivessem ações rendendo juros.
Nota-se que esses escravos ainda eram obrigados a trabalhar,
porque tinham que pagar a diária. Essa dívida era como um chicote, pois temiam
voltar à escravidão pura e simples, debaixo de um chicote de verdade. Os
escravos de ganho atuavam no mercado, motivo pelo qual eram muito mais comuns
nas cidades, com todo tipo de ofício, da prostituição aos negócios, com uma
razoável quantidade de artesãos e pequenos comerciantes.
Ainda existem trabalhadores que pagam diária para seus
donos, mas eles nem sabem que são escravos, denominam-se “empreendedores”.
Quase todos trabalham com capital dos bancos, mesmo quando não sabem, porque
compram a crédito desde mercadorias até instalações. Mas mesmo se não fosse
assim. Mesmo na suposição de que um pequeno empreendedor trabalhe
exclusivamente com seu próprio capital, e devem existir desses casos, continua
sendo um escravo de ganho, porque trabalha mais que um assalariado, e nem por
isso enriquece, portanto nunca pode parar de trabalhar. A matemática é simples
–a riqueza que essas pessoas produzem não fica com elas. Fica com quem? Com
quem possui o capital – os milionários que vivem de juros, os bancos, os
agiotas.
Por isso estão desesperados. Estão ouvindo o estalo do
chicote. Suas dívidas com seus donos estão crescendo. Estão com medo de cair na
escravidão comum, a assalariada.
Dividir os escravos sempre foi um dos segredos que
sustentaram a escravidão. Alguns escravos de ganho exploram os escravos comuns.
A escravidão assalariada se sustenta na miséria, ou mais precisamente, no medo
dela. Quando a pandemia de covid 19 obrigou todos os governos do mundo a
distribuírem o mínimo de dinheiro para possibilitar o isolamento social, surgiu
entre os que exploram o trabalho assalariado o medo de que esse precedente
fortaleça os projetos anteriormente existentes de distribuir renda mínima para
todos os cidadãos. Com renda mínima o ser humano é mais livre, pode exigir mais
salários, pode escolher não trabalhar em certos serviços ou para certos
empregadores.
O mundo dos escravos de ganho está ruindo. Sempre gostaram
de esconder que o trabalho é que gera as riquezas, e agora tiveram que
confessar. Sempre foram contra qualquer atuação estatal na economia, e agora
precisam pedi-la. A escravidão está ameaçada, e eles gostam de ser escravos.
Aos que não querem ser escravos os escravos conformados chamam de “vagabundos”.
A escravidão assalariada, e a dos “empreendedores”, já pode
acabar, já é materialmente ultrapassada. Os robôs permitem a libertação das
massas de trabalhadores. Produzir todo o necessário para a sociedade já exigiu
o trabalho de todos os seus membros, na idade da pedra. O desenvolvimento das
forças produtivas, o aumento da produtividade, permitiu que um só trabalhador
produzisse cada vez o suficiente para um maior número de pessoas, e atualmente
uma só pessoa pode controlar remotamente dezenas de tratores, como se faz no
centro-oeste brasileiro.
Os robôs estão só começando a entrar na produção. Quanto
mais robôs, mais se produz, e quem vai consumir? Os robôs extinguem empregos
que não podem ser substituídos em nenhum setor. O sonho dos escravocratas é que
todos virem escravos de ganho. Ou seja, 10% da humanidade trabalhando com os robôs
para produzir quase tudo o que existe, e os outros 90% com portinhas abertas
fingindo que são empresários, e pagando os juros de que gostam os seus donos.
Uma farsa matematicamente insustentável, e um desperdício – se as pessoas podem
ser liberadas para fazer ciência e artes, porque mantê-las na pasmaceira de uma
vida de escravo?
A única saída será mesmo a renda mínima, se o capitalismo
quiser ter uma sobrevida. Realmente já não será o capitalismo de verdade. É
como quando o movimento abolicionista conseguiu criminalizar os castigos
físicos contra escravos, e abolir os castigos infligidos pelo próprio estado.
Continuou existindo escravidão, mas a instituição estava ferida de morte.
Comentários