Em primeiro lugar é necessário lembrarmos que existe uma
grande divisão oculta entre os comunistas (trata-se aqui de um debate entre
comunistas, portanto já partimos da premissa de que só os comunistas são
realmente socialistas), oculta no sentido de que não gerou correntes, não gerou
rachas, nem linhas, mas existe no seio de cada partido comunista, de cada
agrupamento comunista, como mais um dos muitos reflexos da luta de classes no
seio mesmo dos partidos mais revolucionários e proletários. Essa divisão se dá
entre simpatizantes da mais avançada democracia, a democracia de estilo
soviética, ou comunard, e simpatizantes de regimes autoritários sob comando
comunista.
Claro que se trata de uma divisão muito profunda, mas mesmo
assim, levados pela experiência, pelas circunstâncias etc., alguns comunistas
transitam de um campo para outro, as vezes sem parar. Também é óbvio que
nenhuma vitória é possível sem a resolução dessa questão, porque nenhum
movimento pode crescer e vencer tão dividido, uma vez que assim não é possível
ter uma estratégia. Resoluções oficiais não bastam! Todas as resoluções
oficiais vão falar sempre de democracia. Um lado precisa realmente vencer o
outro ou se desvencilhar dele, conforme tem demonstrado a história. Quando os
bolcheviques se definiram pelo poder soviético, uma série de camaradas, até
então ótimos militantes, abandonaram o Partido, mas dezenas de milhares
ingressaram.
Todas as vitórias socialistas foram conquistadas pelo campo
democrático. A “democracia verdadeira” foi a grandeza da Comuna de Paris em
1871. Os Soviets foram o centro da estratégia vitoriosa da Revolução que não
por acaso leva o nome de Soviética. Os exércitos guerrilheiros chinês,
vietnamita e cubano, venceram porque eram democráticos. Aliás, desde o mundo
antigo, exércitos organizados democraticamente têm se revelado muito mais
fortes que os autoritários.
Contudo, a primeira fraqueza que têm tido esses regimes
todos, de democracias de novo tipo, iniciados com a Comuna de Paris, é que eles
se defendem muito mal. A Comuna se deixou massacrar, pacifista, só fez a guerra
quando inevitável, tarde demais. Os Soviets só resistiram porque fortemente
defendidos pelo Partido Comunista, mas mesmo assim, em 1936, dividiram-se os
comunistas, e os Soviets fizeram uma nova Constituição da União Soviética em
que os Soviets se mantiveram só no nome, transformando-se de fato em
parlamentos do tipo que temos no Brasil. Era naturalmente uma contra-revolução,
que os bolcheviques responderam com a ditadura.
A ditadura bolchevique de 1936 a 1960 teve que ser
defendida, corretamente, pelos comunistas, pois era melhor do que entregar a
União Soviética para bandidos que a entregariam para Hitler. Teve êxitos
sobretudo econômicos, uma vez que implementou uma corajosa política econômica
socialista, a primeira experiência de economia socialista da história.
Naturalmente, os êxitos econômicos são a base dos êxitos militares e
científicos.
Contudo, essa ditadura fracassou, como é natural, e a
contra-revolução tomou conta da URSS, sabotou sua economia por uns 30 anos, e
depois oficializou a volta ao capitalismo. Precisamos repetir – só o caminho
democrático nos leva a vitórias, com o que não estamos falando da fajuta
democracia burguesa, mas da democracia proletária.
Porém, talvez por falta de estudos, talvez pelo desejo
infantil de um caminho mais rápido, permanece forte no seio do movimento
comunista toda uma ala que acredita no caminho autoritário. Também entre os socialdemocratas
são hoje mais fortes os do campo autoritário, aliás muito satisfeitos com o
regime político brasileiro, onde sonham em exercer esse tipo de poder por meio
do poder executivo, ou seja, a estratégia petista de sempre. Os autoritários
socialdemocratas fracassam tanto quanto os autoritários comunistas, mas não se
apercebem disso, pois só pensam na própria carreira política, e enquanto estão
“subindo” acham que estão tendo sucesso.
Precisamos começar revelando essa divisão porque é natural
que antes de resolvê-la, nunca teremos a chance de solucionar os problemas da
democracia de novo tipo que vai nascendo das vitórias proletárias. Enquanto os
próprios comunistas não compreendem que o caminho é uma democracia verdadeira,
ou seja, uma democracia em que realmente a maioria, o proletariado, mande, como
podem orientar o resto da sociedade para a revolução?
Contudo, feita a revolução, os problemas se tornam mais
complexos. Além de ser preciso lidar com a preservação do poder de novo tipo, é
necessário lidar com seus problemas. Os capitalistas/trotskistas inventam
defeitos no socialismo, porque não podem tratar dos problemas que realmente
aconteceram e enfraqueceram as revoluções socialistas. Alguns dos maiores entre
esses problemas, longe de terem sido criados por ditadores, foram criados pela
democracia proletária, exatamente porque ela é real, ou seja, nela as massas
exercem poder real, enquanto nas “democracias capitalistas” são enroladas em um
engodo no qual tentam adivinhar o que farão candidatos que elas não conhecem.
O poder verdadeiro do povo trabalhador é extremamente
eficiente, como se provou onde foi aplicado, mas não é isento de defeitos. Pela
sua importância, a economia quase sempre é o critério para se dizer se uma
sociedade vai bem ou não. Se a economia funcionar bem, poderá existir um
sistema de saúde eficiente, um sistema educacional bom, dinheiro para pesquisas
e para as artes, esportes etc. Em resumo, na percepção das massas
despolitizadas e de todo o mundo, se a economia funcionar bem, a sociedade
parecerá muito bem. E nesse aspecto, o econômico, apesar de toda a propaganda
liberal, absurda, as democracias proletárias obtêm sucessos que apavoram os
capitalistas, e são escondidos com um mundo paralelo de propagandas, para não
revelarem o quanto as economias de mercado são ineficientes.
Contudo, o poder proletário não se exerceu somente sobre a
economia, mas sobre diversos aspectos da sociedade, que os ineficientes
governos capitalistas só fingem tratar. Essa ineficiência dos governos é uma
força do capitalismo, desenvolvida naturalmente, por seleção natural, como tem
sido com todas as sociedades humanas até hoje. Simplesmente, foram os governos
relapsos que se adaptaram, o governos sérios demais caíram. Nós comunistas não
podemos contar com a seleção natural. Os seres humanos sempre fizeram história
sem saber de fato o que faziam, sem compreender quais seriam os resultados. O
desafio diante dos comunistas é, pela primeira vez, construir uma sociedade
sabendo que estão fazendo.
Em que tem dado problemas as democracias das massas
proletárias?
Da Comuna de Paris, que só durou dois meses, só podemos
apontar o pacifismo e o moralismo, ambos fatais, fatais mesmo, pois morreram
mais de 20 mil comunards, e cerca de 200 mil foram exilados. Se os povos
pudessem escolher, quase nunca aconteceriam guerras no mundo atual. O que dizer
então de uma população católica como a parisiense? A Comuna tentou evitar a
guerra, e isso lhe custou uma guerra e a derrota. O moralismo das massas também
pode ser prejudicial. A Comuna não tocou no Banco da França, e se deixou
massacrar, quando podia, com um só ultimato, ameaçando queimar os arquivos
todos do banco caso Paris fosse atacada, salvar Paris e a Revolução que lá se
iniciava.
O poder soviético durou 19 anos, e mesmo durante os anos
1936 a 1960 ainda eram utilizados seus princípios em diversos aspectos da vida
soviética. Merecem destaque os problemas com a ciência e as artes. Se dá certo
planejar toda a economia, porque não daria certo planejar o desenvolvimento
científico e a difusão das artes? Foram organizados esses setores conforme o
projeto democrático, ou seja, a democracia direta me congressos de cientistas e
de artistas de cada área, por exemplo, biólogos, físicos, psicólogos, assim
como escritores, músicos, pintores. Naturalmente, existiam correntes opostas
dentro de cada área do conhecimento e das artes, como em todo lugar, em todo
tempo. No mundo capitalista as correntes também lutam entre si, e também usam
todo tipo de política nessas lutas, incluindo a repressão política, porém os
cientistas e artistas têm a seu favor a ineficiência do capitalismo, que não
permite às tendência dominantes exercerem seu poder como desejariam. Na União
Soviética, naturalmente, as decisões dos congressos eram cumpridas, as
correntes derrotadas perdiam seus espaços para as correntes vencedoras, e as
vitórias, uma vez que políticas, não eram científicas, muito menos artísticas.
As correntes que estavam perdendo no mérito do debate apelavam para o
nacionalismo ou para o socialismo como forma de ganhar apoio. Os prejuízos só
não foram maiores para a ciência e as artes soviéticas porque eram compensadas
por uma economia potente.
De fato temos dois grandes erros nessa experiência
soviética, a pretensão de que a ciência e as artes fossem democráticas e
soviéticas, no sentido de serem a mesma coisa na União Soviética inteira. Duas
coisas desnecessárias, anticientíficas e antimarxistas. A ciência não é
democrática, nasceu antidemocrática e só pode existir assim. A ciência está
sempre com a mais ínfima minoria, porque fazer ciência é contrariar o que todo
mundo acha que sabe. O motor da ciência é a dúvida, a dúvida sobre o que está
estabelecido, ou seja, duvidar do que todo mundo acredita. O marxismo tem como
base filosófica o materialismo dialético, e por materialismo os marxistas
entendem aceitar as descobertas científicas, uma vez que consideram que só a
ciência pode dizer o que é a matéria, o que é o universo que realmente existe.
Ou seja, a pretensão inocente de substituir o método científico por congressos
de cientistas, por ser anticientífica, era antimarxista. O grande desafio é
deixar os cientistas e artistas completamente soltos, ou seja, a democracia tem
que fixar seus próprios limites. Não tentar uniformizar seja a ciência, sejam
as artes, em um país todo, é uma forma de estimular essas áreas, ao contrário
da economia, em que o planejamento só pode ser o mais amplo territorialmente
possível.
Mais recentemente, em Cuba, vem a tona um problema que
existiu também em outros países que fizeram revoluções socialistas, a relação
entre o poder popular e a sexualidade. É simples, a maioria da população
brasileira ainda não aprova que casas gays adotem filhos, e há vinte anos atrás
não aceitava nem que eles existissem. Com o poder em mãos, essa maioria poderia
impor sua opinião sexual, e foi o que fez na União Soviética e em Cuba. Na
União Soviética, nos meses seguintes à Revolução, destruída a máquina
repressiva do Tzar, os revolucionários exerceram a liberdade sexual como poucas
vezes se viu no mundo. Mas na medida em que as massas populares, por meio dos
Soviets, foram tratando de assunto por assunto, impuseram seus preconceitos
conservadores e acabaram com as orgias das margens do Riva. As famílias logo
voltaram a serem valorizadas e propagandeadas, e seriam mesmo canais de
enfraquecimento do poder soviético nos anos seguintes, gerando corrupção e
criminalidade. É nítido como grande parte da corrupção existente no mundo é
para beneficiar familiares. Em Cuba os gays estão ganhando seus direitos na
medida em que a população, assim como no mundo todo, vai sendo convencida de
que deve aceitá-los.
Não é novidade, todo regime político precisa de sustentação.
Por vezes se impõem regimes que hostilizam a maioria do povo, que empobrecem a
esmagam as populações. Como se sustentam? Entre outras coisas, se sustentam em
minorias que de outra forma seriam reprimidas. Para se fazer uma
contra-revolução essas minorias são igualmente úteis. Quantos milhares de
homossexuais não acabaram por se dedicarem à contra-revolução? A Revolução
podia beneficiá-los em uma série de coisas, mas os reprimia inutilmente...
Assim também, por essa inabilidade, as Revoluções socialistas do século XX
enfrentaram correntes de cientistas e artistas, que se não fossem incomodados
nunca se dedicariam a isso.
Para lidar com essa questão os comunistas devem se lembrar
de que a construção de estados socialistas é só um primeiro passo da Revolução.
O objetivo final é a extinção dos estados! Para pensar a ciência, as artes, a
sexualidade, devíamos pensar em praças públicas. Qual a necessidade de se
estabelecer poderes para mandarem nas praças públicas? Elas não funcionam sem
ninguém que as chefie? Então, estabelecer um regime democrático em uma praça
pública, e daí um governo, seria um avanço democrático ou um retrocesso
autoritário? A democracia, devemos lembrar, não é completa liberdade, mas uma
forma de poder.
Comentários